sábado, 11 de fevereiro de 2012

A omnisciência da ciência

"Omnisciência: a capacidade de saber tudo infinitamente (ad infinitum), incluindo pensamentos, sentimentos, vida, passado, presente, futuro, e todo universo. Na maioria das religiões monoteístas esta habilidade extraordinária é tipicamente atribuída a um único Deus supremo, onde o conceito da omnisciência se mantêm tradicionalmente como uma verdade absoluta."

A ciência não é omnisciente. Se és pela ciência, és pelo desconhecido: a ciência só estuda aquilo que desconhece . É esse o objectivo de se construir ciência: conhecer o que se desconhece; traduzir em leis humanamente inteligíveis aquilo que é aparentemente ininteligível.
Se dizes que és uma pessoa científica e racional e que, por isso, não acreditas em nada que não tenha sido cientificamente comprovado até ao momento, estás a ser comprovadamente obtuso. Pois até a Ciência, que tanto deificas, acredita naquilo que não foi cientificamente comprovado até ao momento - caso contrário, seria encerrada: diríamos: "Já sabemos tudo o que há para saber, meus senhores; despeçam-se os cientistas, encerrem-se os laboratórios, sejam transformados em museus os centros de investigação".

Ressalvo: se preferes, por opção pessoal, acreditar só naquilo que está cientificamente comprovado - que é o mesmo que dizer que só acreditas na ciência do passado, pois a ciência do presente, e que será a do futuro, encontra-se em fase de estruturação nos minutos que correm - podes fazê-lo, sim. Mas quero só irritar-te um pouco, sussurando-te rispidamente ao ouvido que essa "posição intelectual" (atitude que chamo usando da minha sensata condescendência, porque a minha vontade é chamar-lhe de "crença ideológica") é tão parcial e velada de verdade (tão tapadinha e estúpida, para ser mais clara) como qualquer outra crença religiosa ou ideológica (essas coisas estranhas que tu detestas) que coloque a defesa dos seus princípios à frente das razões para a defesa dos seus princípios. Se defendes a ominisciência da ciência, defendes a ditadura daquilo que se sabe - e nunca chegarás a saber mais: serás cegado pela luz que te deveria iluminar.

A ciência é pelo mistério. E digo-te mais: cientificamente, tudo é passível de existir, até que seja passível de se provar que não existe; tudo pode ser verdadeiro, até que se consiga provar o seu contrário. Por exemplo: sabemos que o céu é azul, e temos a certeza que o céu é azul, porque temos a capacidade de cientificamente comprovar que ele é azul e não é vermelho, nem verde, nem nenhuma outra cor. Mas, por exemplo: não sabemos se a telepatia existe, porque não temos meio de provar que ela existe; mas também não sabemos se a telepatia não existe, porque não temos meio de provar, por nenhuma fórmula, que ela não existe - então, apesar da ciência (ainda) não ter descoberto a telepatia, não podemos dizer: "ah, a telepatia não existe, porque não existem provas; é um mero fruto da imaginação e da necessidade do homem acreditar em algo." Acontece apenas que a ciência (o homem) ainda não conseguiu comprovar ou descomprovar a existência da telepatia.

Espero que até aqui já tenhas percebido a lógica da batata: não tem nada que saber.

O meu conselho (apesar de não mo teres pedido, eu sei) é: aceita que és pequeno e abraça o desconhecido com humildade - pois só assim descobrirás, com a ciência ou a consciência, como és grande.


27.03.2012

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Fórmula de Deus (carta aberta a Fernando Savater)

Caro Fernando Savater:

Ainda vou nas primeiras páginas do seu livro e não me contenho em lhe escrever. Sei que seria mais sensato ler o livro até ao fim para depois aludir metodicamente a cada um dos seus argumentos e combatê-los um a um, não deixando assim nenhuma ponta de fora que possa ser utilizada contra a minha própria contra-argumentação. No entanto, o meu pequeno resquício de faceta sanguínea ergue-se involuntariamente de dentro de mim ao ler o que tão admirável e letrado cérebro literário espalha com vigor aparentemente racional nas páginas do seu livro anti-vida eterna intitulado precisamente "Vida Eterna".
Ora, como será possível - argumenta o meu estimado escritor - que mesmo actualmente, numa época de tal avanço tecnológico, ainda cerca de 40 por cento dos cientistas acreditarem em Deus - o que é, de resto, a mesma percentagem que há séculos atrás? Como será possível - pergunto-lhe eu - as pessoas andarem tão ceguinhas para acreditarem em algo tão irracional, mesmo não estando nós mais mergulhados na idade das trevas em que a religião era utilizada como ferramenta de concertação social das massas?

Ora, meu caro e admirado escritor, deixe que lhe diga - olhando de baixo para cima, da base da minha humilde posição de leitora não especializada - que a oposição argumentativa Deus versus Ciência (tão popular e - perdoe-me - tão óbvia, tão fácil de construir) não é mais que uma falácia - sim: uma falácia.

(No meu caderno de notas eu tinha isto esquematizado em desenho - forma bem mais fácil de lhe explicar - mas vou tentar traduzir em palavras):

No momento presente, Deus (que, segundo o seu raciocínio, joga na equipa A): é o inexplicável; Ciência (que, segundo o seu raciocínio, joga na equipa B): é o explicável - certo? - até aqui penso que concordamos.
Cada um deles tem as suas limitações: as limitações de Deus são o facto de não ser explicável ou provável porque não temos (ainda) essa capacidade; as limitações da Ciência é o espaço/tempo em que nos encontramos (não conseguimos saber mais do que se sabe até ao momento presente, no contexto em que vivemos), a inteligência (que, mesmo nos Q.I. mais elevados, tem um limite), e a percepção sensorial (não conseguimos absorver mais sensorialmente do que aquilo que os nossos sentidos nos permitem).
Esta é a situação no momento presente.
No futuro, meu caro Fernando Savater, poderemos colocar a hipótese de a própria Ciência ser capaz de de explicar Deus - de o converter numa fórmula matemática. Podemos imaginar até (pois se até o génio Einstein defendia a imaginação face à inteligência, como veículo de criatividade científica construtora de conhecimento - e não apenas seguidora de conhecimento) que, no momento em que a Ciência for capaz de explicar Deus, esta terá atingido o seu último patamar.

Até lá, temos simplesmente que aceitar que Deus é inexplicável.

Posto isto, existem duas opções à escolha de cada um de nós - incluindo à sua (e agora, permita-me tratá-lo na segunda pessoa, não por atrevimento, mas por preguiça em manter o meu estilo directo de escrita):

1. Aceitas que na tua humilde condição humana tens limitações (no momento presente, é certo - no futuro podemos ser vir a ser ilimitados), vestes o "eu só sei que nada sei" de Sócrates (o original, não o corrompido) e decides - mesmo sem provas suficientes - acreditar naquilo que a tua intuição "sabe" que existe (e a intuição não é mais do que o produto de um pensamento instantâneo que ocorre no subconsciente e cuja resposta te surge a nível consciente, dando-te o resultado de uma pergunta mas não te deixando ver o caminho pelo qual chegaste à resposta) - a isto também de chama "fé";
2. Decides que o homem é todo poderoso: que tudo o que o homem consegue explicar existe e tudo o que o homem não consegue explicar não existe.
Esta segunda atitude faz-me lembrar - e desculpando-me antecipadamente pela tosca e nada fundamentada comparação - a mesma que levou a que a Giornado Bruno fosse morto por alegadamente defender que a Terra gira à volta do Sol (o helicentrismo de Copérnico): como os sábios da altura não conseguiam explicar tal teoria, rejeitavam à priori essa verdade, pois violava a sua percepção sensorial e os meios de prova de que dispunham. Só passado muito tempo, quando se conseguiu comprovar e estabelecer na comunidade científica que a Terra gira mesmo à volta do Sol (e não o contrário, como se pensava até então) é que se conseguiu quebrar essa heresia - até que hoje toda a gente sabe que a Terra gira à volta do Sol, apesar de para nós não parecer, pois somos demasiado pequeninos para termos a visão global daquilo que realmente é.

Resumindo, se decidires que, como não consegues explicar Deus, Deus não existe - estás no teu direito. Mas não estás no direito de dizer que Deus não existe - apenas podes dizer que decidiste não acreditar em Deus, porque ele ainda não é explicável - porque não te esqueças que, assim como a Ciência ainda não pode comprovar que Deus existe, a Ciência também ainda não tem meio de comprovar que Deus não-existe. Isto por si só é a prova de que ainda não chegamos ao tempo em que a Ciência será capaz de explicar Deus: com uma fórmula completa nos provará por A mais B que Deus existe (ou não existe).

Compreenda então, meu caro Fernando Savater, como pessoa racional e imparcial que é, que grande parte dos nossos estimados cientistas, optaram pela opção 1: pois é a opção 1 - a de se sentirem pequenos no universo, ignorantes face ao infinito e ávidos por mais conhecimento - que torna o cientista na mente simultaneamente humilde e poderosa que é.


sarrabiscado a 21.02.2012 - 4:30



"A coisa mais bela que o homem pode experimentar é o mistério. É essa emoção fundamental que está na raíz de toda ciência e toda arte."

“A religião do futuro será cósmica e transcederá um deus pessoal, evitando os dogmas e a Teologia.”

“Sem a convicção de uma harmonia íntima do Universo, não poderia haver ciência.”

“Você não pode provar uma definição. O que você pode fazer é mostrar que ela faz sentido.”

“A ciência sem a religião é paralítica - a religião sem a ciência é cega.”

“A mente avança até o ponto onde pode chegar; mas depois passa para uma dimensão superior, sem saber como lá chegou. Todas as grandes descobertas realizaram esse salto.”

“Penso 99 vezes e nada descubro; deixo de pensar, mergulho em profundo silêncio: e eis que a verdade se me revela.”

“Deus é a Lei e o legislador do Universo.”


Frases de Albert Einstein






quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Deus é tabu, sexo não

Chegamos ao dia em que é muito mais socialmente aceitável falar de sexo do que falar de Deus.

Antigamente, quando se queria referir ao dito cujo sexo, usavam-se todos os eufemismos, sinónimos e metáforas possíveis para se referir "àquilo" que era o fruto proibido apenas tacitamente permitido no leito conjugal legalmente selado. Actualmente, finge-se que o dito cujo Deus não existe senão num local apropriado para o efeito e devidamente resguardado de olhares impróprios (igreja, santuário, centro paroquial) ou somente na intimidade de cada um.

Deus te livre de dizeres que acreditas em Deus em público, a criaturas mundanas exteriores numa conversa casual! Uma coisa é acreditares em privado, à noite com os teus botões ou em momentos de desespero que te levem à loucura de conceber tal fantasia. Outra coisa é escarrapachares grotescamente numa tertúlia semi-alcoolizada que acreditar em Deus é para ti tão natural como respirar e tão bom que queres acreditar insaciavelmente todos os dias e todas as noites, sobretudo aos fins de semana, feriados e férias - que é quando estás mais disponível e aberto para acreditar [nota irónica de analogia com o sexo].

Antigamente, se um comum mortal verbalizasse ao seu círculo social que gostava de sexo (tal como qualquer ser humano biologicamente saudável e funcional pode e deve gostar) seria prontamente cruxificado e colocado num frasco para ser analisado em laboratório, não só pelo facto em si, mas por ter tido o descaramento de o admitir. Actualmente, ser ateu ou agnóstico é considerado um sinal de afirmação cool e até de superioridade intelectual típica de quem não vai carneirada (se bem que, tendo em conta a inversão de tabus aqui exposta, actualmente ir na carneirada é precisamente ser ateu ou agnóstico), mas se tiveres a lata de dizeres que acreditas mesmo em Deus - assim, de repente, à frente de toda a gente, em plena luz do dia e perante as câmaras e olhares curiosos - és imediatamente submetido a um interrogatório extensivo sobre todos os "comos" e porquês" e, na melhor das hipóteses, posteriormente catalogado com uma etiqueta brilhante a dizer "diferente", "antiquado" ou "inocente" (isto se o teu interlocutor for condescendente e achar que o teu caso não tem cura, caso contrário, prepara-te para uma tentativa de evangelização laicista).

Deus te livre de dizeres que acreditas em Deus sem tabus! Uma coisa é dizeres que és uma "pessoa ligeiramente espiritual", dizeres que és um "crente não praticante" (o que por si só é uma antítese bastante paradoxal, pois independentemente de participares ou não nas actividades da tua religião, praticar a tua crença consiste simplesmente em vivê-la, nem que seja no teu interior - e se não a vives não acreditas: pseudo-acreditas, ou acreditas em potencial, mas não de facto), ou dizeres que és uma pessoa que acredita numa "força-superior" ou numa "energia-da-natureza que-une-todos-os-seres-pelo-amor". Outra coisa é deixares as metáforas e eufemismos de lado e chamares a essa força D-E-U-S com todas as letras, sem um pingo de vergonha na cara nem o recatamento de modéstia espiritual que requer semelhante afirmação aberrativa passível de ofender a sensibilidade rude dos teus próximos.

Chegamos ao dia em que o kama sutra é biblificado, o gemido é venerado e o prazer é louvado. Mas a fé é sussurrada, a oração é censurada e a crença é recalcada.
Neste belo dia a que chegamos, se disseres publicamente que acreditas em Deus vais ter que te confessar e redimir desse pecado até te reconverteres à laicidade ou, no máximo, à dúvida metódica - ouviste, ó ímpio?

Neste belo dia a que chegamos, o tabu do sexo já foi - graças a Deus - derrubado. Ora - por amor de Deus - parem de edificar agora o tabu de Deus, não vá acontecer que o homo sapiens desafie a lei de Darwin e retroceda para homo erectus. Que possam viver a partir de hoje os dois erectos na sociedade: o sexo - e Deus.


09.02.2012

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Eixo

Delegar em Deus tudo aquilo que foge ao nosso real controlo - este é o segredo para a paz de espírito e a serenidade perante as adversidades maiores -, sabendo com segurança que em algum lugar do universo tudo estará bem e sempre esteve. Esse lugar existe também dentro de nós e podemos voltar a ele sempre que queiramos - desde que saibamos o caminho.

E qual O caminho? Poderá ser diferente para cada um de nós, mas só existe um único caminho directo para a alma, para Deus, para esse" lugar", em cada Ser. Para mim, é a Verdade. ("You shall know the truth and the truth will set you free"; "I am the way, the truth and the life"). A razão porque a verdade liberta é porque traz a paz plena - o chamado "céu". Porque todas as conquistas serão ainda mais gloriosas quando as elevamos pela gratidão ao bem do universo; e todos os buracos de dor serão curados quando entregamos ao bem a responsabilidade por cuidar de nós com a confiança de que tudo existe por um motivo maior, que tem sempre origem no bem - pois o bem é a fonte de toda a criação, de tudo o que existe.

Mas isto, meus amigos, é algo que cada um só consegue enxergar com os olhos da alma; nenhum tipo de raciocínio seria suficiente para fazer um cego intelectual ver esta verdade que, uma vez descoberta e sentida, ficará gravada eternamente no teu ADN espiritual evolutivo (sim: o teu genoma evolui ao longo da vida - isto é: se tu evoluíres em vez de vegetares *  *). E, após imbuída intrinsecamente no teu âmago, esta verdade será sempre a tua ponte de salvação para a vida - por mais que voltes a tropeçar, por mais que as distracções te levem para longe da verdade, por mais que julgues que te perdeste do caminho: voltarás sempre para casa, pois o Caminho não te deixará perder e aceitar-te-á sempre de volta com os braços abertos de amor.

O meu objectivo é fazer o mínimo de desvios possíveis, de modo a rentabilizar ao máximo a minha vida. Sempre que me tiver esquecido de como é sentir este amor divino, deixo aqui uma nota pessoal de que (para mim) geralmente o melhor remédio é através da música, do silêncio, da visão de algo inspirador na natureza ou do conhecimento científico de algo tão extraordinário que assoberbe a alma.

Além disto: rezar, que - apesar de para os leigos parecer ortodoxamente antiquado - é a melhor meditação e terapia até agora inventada na sociedade ocidental e oriental e, até ao momento em que escrevo, ainda não ultrapassada por nenhuma outra invenção moderna. Porque quem reza coloca-se constantemente perante Deus de forma nua; põe à prova as suas acções face a um ideal; põe-se em cheque; desafia-se a ser melhor; submete-se a uma permanente autoscopia sem hipótese de fuga da verdade; sente o sabor da humildade como um bálsamo para o coração deixar entrar o amor; e aprende a amar a verdade, pois só ela nos permitirá avançar, através da aceitação, do perdão, da justiça e da gratidão.

Não sei se fui suficientemente clara, mas de qualquer modo só quem partilhar do mesmo ideal e tiver presente em si esta verdade de crença, é que conseguirá compreender a mensagem na sua plenitude.

Os restantes, poderão processar o raciocínio lógico, mas não atingirão o significado no seu íntimo - por isto, apresento as minhas desculpas e os meus pêsames.


08.2011

 



segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Quantas vidas já viveste?

A vida é uma série de recomeços.

O aparente processo biológico de nasce-cresce-envelhece-morre é algo que acontece num ciclo cronológico único às células do nosso corpo - mas que acontece em sucessivos mini-ciclos consecutivos aos átomos da nossa alma.

Durante a tua vida vais-te sentir: a crescer - quando algo insuflar o embrião do que queres ser - ; a envelhecer - quando algo amadurecer a tua bíblia autobiográfica - ; a morrer - quando algo triturar em bocadinhos tudo o que pensavas que sabias e implodir o teu suspiro - ; e a nascer - quando das cinzas acordadares para o raio de sol sobre a lucidez crua de que quando não tens nada não tens nada a perder: e assim te é parida uma nova vida bebé dentro da tua vida (e que, como bebé que é, começa com o choro da primeira respiração).

A vida é uma série de recomeços.

Por isso, quando estiveres a crescer não te afogues na sofreguidão; quando estiveres a amadurecer não te percas na ganância ambiciosa de manter o que conquistaste com a ansiedade do para-sempre; quando estiveres a morrer não te iludas que será o fim de tudo e pensa que tudo passa, pois nem a morte é permanente; e quando estiveres a renascer não te absorvas pela toda-poderosa sensação virgem e procura enquadrar este nascimento em tudo o que aprendeste das tuas outras vidas - dos teus outros mini-ciclos de vida - fazendo de cada vida um renascimento - nascendo em cada ciclo num patamar evolutivo superior.

Diz-se que há vida para além da vida; diz-se também que há reencarnação para além da vida; diz-se que só há morte para além da vida; diz-se também que a reencarnação é uma treta ultraespiritualisada - mas não é nada disto que eu estou a falar (hoje).
Do que eu estou a falar (se é que me entendem) é das vidas dentro desta vida; dos nascimentos e mortes dentro desta vida que nos fazem crescer e que nos trazem em cada morte mais vida.

A vida é uma série de recomeços.


05.02.2012.
5:00

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Sou perfeita

Perfeita: não por comparação a um modelo pré-concebido daquilo que deve ser a perfeição estereotipadamente falando, mas porque não existe ninguém mais perfeito do que eu a "ser eu." Eu fui feita para ser eu - não para ser a maior aproximação da perfeição social da actualidade - por isso sê-lo-ei tanto mais quanto mais eu for a minha essência em cada momento.

Assim sendo, a dificuldade em ser perfeita está em afastar todas as distracções plásticas do mundo formatado - para se conseguir ser fiel ao interior eterno que sempre foi. A busca da perfeição socialmente moldada é que cria imitações forjadas que estão na origem do ciclo de insatisfação que a mesma sociedade promete saciar.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Sou só uma

transcrito de um antigo diário, escrito em 07.07.2002



Às vezes apercebo-me de que sou só uma.

Eu vou explicar: o facto de viver numa zona pequena e pacata, numa casa e num quarto só para mim - entre outros factores - pode-me dar uma sensação de um egocentrismo saudável ao equilíbrio psicológico - pois como estou inserida num ambiente que consigo dominar, e que por vezes quero extravasar, isso dá-me uma estável impressão da minha indispensabilidade, como se eu fosse inerente à harmoniosa manutenção contínua do ambiente em que vivo e dos seres que o constituem.

No entanto, por vezes tomo consciência daquilo que está na base do icebergue: apercebo-me da imensidão daquilo que não sei, da quantidade de lugares em que não estou, da longevidade do tempo que me ultrapassa.
E então o que outrora o que eu sentia como um mundo pequeno demais para me satisfazer transforma-se num universo extenso demais para eu absorver no curto espaço de tempo que biologicamente me é dado (que circunstancialmente eu espero que seja assegurado) e tendo em conta as condições disponíveis (imposições sociais, limitações financeiras, escolhas pessoais, características de género, restrições morais, entre outras).

Bem, e aí começo a sentir que nunca conseguirei viver totalmente o universo por todas as perspectivas ou mesmo por uma só perspectiva em todas as vertentes de forma absoluta. Isto porque eu sou só uma.

Uma.

Uma mísera e delimitada uma.


quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Se fizeres, faz em grande

Para conseguirmos realizar um objectivo, ele tem que ser suficientemente Grande para inspirar toda a nossa mobilização em prol da sua concretização.

Por isso acaba por ser mais "fácil" atingir um objectivo que consideremos grande, do que um mediano - pois este último está muito está muito mais sujeito à desistência mediante a mínima adversidade, para além de conseguir mobilizar apenas uma pequena percentagem dos nossos esforços.

E é precisamente esta capacidade de concentração de esforços e de utilização de todo o potencial humano (latente em todos nós, mas utilizado apenas por alguns) que distingue os bons dos extraordinários.

Por isso, fazer algo que consideras grande é meio caminho andado para o sucesso.


pensamento de praia, de Agosto 2011.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Razão de viver

transcrito de antigo diário, escrito em 22.01.2002


Tenho pena das pessoas que acham que existe o destino. Elas pensam isso para compensarem o facto de não saberem o que estão cá a fazer e o facto de não quererem admitir que sabem o quão são insignificantes neste universo infinito de matéria gigantesca.
"E o homem, em seu orgulho, criou Deus, à sua imagem e semelhança" - disse Friedrich Nietzsche. Com esta referência não quero dizer que Deus não existe. Aliás, na concepção que eu tenho, ele existe. Mas acho que todos os escritores, filósofos e etc. que se referiam ao absoluto que desconhecem como algo inatingível e que diziam que isto cá na Terra é só um reflexo do absoluto...sei lá, acho que devem ter sido infelizes e deixam-me cá uma nostalgia, um vazio, uma pena...É que eles passaram a vida inteira a tentar encontrar a raiz existencial.

E - eu vos-vos dizer - o que acontece é que não há uma razão para nós existirmos. Nós não somos assim tão indispensáveis ao universo só pelo simples facto de existirmos. Pelo contrário: somos consumidores da matéria que poderia alimentar outros seres em vez de nós. É triste, mas é assim. E se soubermos aproveitar a situação, até nem é assim tão triste.
Não tem que haver uma razão para existir, a não ser aquela que nós próprios criamos: exactamente. Cada um (condicionado pelo meio, genes, decorrências) é que vai desenvolver na sua inteligência a razão de viver.
E não vale a pena ter crises existenciais e sofrer por isso. Para quê? Nunca - nem aqui na Terra, nem aqui na Terra - iremos saber mais do que aquilo que o nosso organismo o permite (com todos os seus sentidos e os 100% de cérebro - não apenas os 10% que são os que hoje se conhecem serem responsáveis pelo pensamento acessível pelo raciocínio).
O que acontece é que somos demasiado inteligentes para termos consciência do que não sabemos; e demasiado burros para não conseguirmos saber aquilo de que temos consciência não saber.

 

Somos uma mísera partícula no país: na Terra: no Sistema Solar: no Braço de Orion da nossa galáxia: na Via Láctea: no Exame do Grupo Local de galáxias: no Superexame local - que é apenas um dos milhões de Superexames de galáxias.

Mas o que conta é o que fazemos na medida em que nos é acessível. Porque é um milagre sagrado e mágico este da vida e é uma honra fazer parte de uma obra tão grandiosa, bonita e infinita como esta. No meio de tantos pedregulhos, pós e gás, o nosso pedregulho caseiro é mesmo um fenómeno exemplar de desenvolvimento da vida.




-Quantas hipóteses tenho de a conquistar, Mary?
-Muito poucas.
-Quantas? Assim, digamos: uma em 100?
-Bem, eu diria: uma num milhão.
-Ah! Então diz-me que há uma hipótese? Yeah!
(do Dumb and Dumber:
http://www.youtube.com/watch?v=qULSszbA-Ek)



Tens medo de receber o infinito? ∞

Às vezes não estamos preparados para o infinito. Sabemos que somos o mundo, sabemos que podemos alcançar o tudo - mas temos medo (medo de quê?). Medo: de sermos demasiado pequenos para abraçar o tudo que queremos ter (mas - sim - nós somos pequenos, e é por sermos pequenos que somos grandes); do tudo nos insuflar de vida e de repente descobrirmos que podemos voar - e, não, às vezes não queremos voar (porquê?); queremos permanecer algemados à constância enfadonha e segura da terra.

Às vezes não estamos preparados para o infinito. Não estamos: sabemos que ele existe (já o vimos, já o conhecemos, já o compreendemos) e gostamos de saber que ele existe - mas saber que ele existe é mais uma das paredes confortáveis e enclausuradoras que edificamos à nossa volta, para nos assegurarmos de que "está tudo bem assim como está". Não estamos: corremos a maratona, vencemos a corrida, bebemos as lágrimas de suor espremido, mas (por algum estranho motivo) uma cãibra de cobardia faz-nos procrastinar a reclamação do troféu.

Às vezes não estamos, e continuamos a não estar, preparados para o infinito. Temos medo: medo de receber; medo que o infinito não caiba em nós e que nós não saibamos ser o infinito como deveríamos ser, quando ele estiver em nós (quando fores o infinito).
Preferimos continuar aprisionados em condicionalidades hipotéticas, em realidades conjuntivas, em presentes imperfeitos, em equações não resolvidas. Preferimos permanecer no potencial, no sonho, no que "poderia ser se".

Porquê? Porque temos medo. Temos medo de olhar para a flor desabrochada e nela reconhecermos a fragilidade da beleza que passa; temos medo de ter o tudo e vermos como é grande tudo aquilo que podemos perder - temos medo de nos perder.

Então, preferimos ser só metade do que poderíamos ser. Porque assim continuaremos a ter só um pé no infinito (e o outro, aflito, no finito) - e, então, assim, é só metade aquilo que podemos perder; e é só metade o medo de ser; e é só metade o medo de viver; e é só metade o medo de morrer (porque quem não tem nada, não tem nada a perder).

E também é só metade o infinito que poderias ser - e deixa-me te esclarecer: metade do infinito é zero (porque 0 é o número que fica entre os números infinitos positivos +∞ e os números infinitos negativos -∞). Se fores metade do que poderias ser, não és meio, és nada: és um nada.

Por isso, não tenhas medo de te perder - e ser o infinito que podes, agora, ser.




27.03.2012



segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O infinito abortado

Quero ser tempo: tempo para ser tua. Não quero ser sujeito, nem verbo, nem adjectivo teu; quero ser aquela substância omnipresente – e sempre latente – que te absorve; ser sempre presente. Posso ser?
Estou farta (farta é eufemismo), lucidamente intoxicada de ausência – ausência de presença.
Dá-me, dá-me já, ou abstém-te para sempre. És um pseudo-tudo: equação perfeita sem resolução final, potencial sem potência, objectivo sem objecto; prezas-me, mas menosprezas-me e desesperas-me, pela tua dormência letárgica plasticamente saudável – essa amorfia que abomino –, pela tua intensidade guilhotinada, pela voz surda, olhar mudo: és um infinito abortado.
Fui tempo. Agora sou saudade.

foto: buraco negro na Via Láctea


Texto escrito em Dezembro de 2011, como resultado de um exercício de sintaxe que me foi dado pelo escritor Pedro Chagas Freitas e que consiste em transformar o seguinte esquema de números de palavras e pontuação num texto:

3: 4. 4, 2, 3; 5 – 3 – 3; 3. 2?
2 (3), 4 – 3.
1, 2, 4. 3: 5, 3, 3; 1, 4, 6 – 4 –, 5, 3, 2: 4.
2. 3.

Experimentem!

      

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

A manta de retalhos

Era uma vez uma manta de retalhos.
A manta era muito grande e colorida, composta por muitos retalhos, cada um com a sua história; cada um representando uma parte de si.

Mas a manta não conhecia a história e a origem de cada retalho - a manta não se conhecia.

A manta só sabia que era uma grande manta de retalhos, maior do que qualquer outra que tivera visto. Era uma manta maiúscula no mundo das mantas, sendo sempre colocada por cima de todas as outras: nas camas, nos sofás, no colo dos avós, no chão do quarto de brincar das crianças.
A manta julgava-se uma senhora manta, rainha dos retalhos - seus subservientes súbditos.

Até que um belo dia de verão, os retalhos decidiram que queriam ser independentes e ser donos do seu próprio destino.
Um retalho pensou: "eu quero ser um lenço da mão de um executivo de valores tradicionais e estilo inimitável; quero ser o toque final de primor na sua vestimenta".
Outro retalho fantasiou: "eu quero ser um cachecol a afagar o pescoço de uma menina de pele de seda; quero ser o seu conforto familiar em forma de tecido nos dias de frio".
E ainda, um outro retalho divagou: "eu quero ser um pano de limpeza nas mãos ásperas de um marinheiro; quero ser útil no asseio de um meio de transporte tão esplendoroso como é um navio, viajando ao sabor do vento".
Ora, quando a cada retalho começou a pensar por si próprio - e mais -, quando cada um começou a verbalizar as suas aspirações individuais aos outros retalhos, mais retalhos foram se descobrindo a si próprios, explorando sonhos que nunca imaginaram serem possíveis de existir, pois sempre suposeram que só poderiam subsistir enquanto fossem parte de uma manta orgulhosa.

Foi então que a grande manta se apercebeu que, afinal, não era uma grande manta, mas sim um conjunto de retalhos que até então desconhecia. E que se não começasse a conhecer e a prestar atenção a cada bocado de si, em breve estaria morta, desfeita, esfarrapada.

Posto isto, a manta convocou uma assembleia para todos os retalhos, em que cada retalho deu voz à sua expressão interior: a manta deixou pulsar cada ponto do seu ser, cada bainha mal cosida, cada remendo estortegado.
Depois de serem ouvidos todos os desejos de cada retalho, seleccionaram-se dois ou três que poderia ser realizados enquando manta - enquanto retalhos unidos:
apagar o fogo do corpo de vítimas num incêndio;
aconchegar um sem-abrigo num albergue;
decorar a parede de uma sala de gosto estético alternativo.
Os restantes desejos foram classificados como desviantes do destino do "ser manta", pois só poderiam ser realizados por retalhos individuais enquanto retalhos.

E foram a votos:
quem quer ser parte da manta, perseguindo os novos propósitos definidos por todos os retalhos;
e quem quer ser retalho, vivendo um função mais simples mas mais diferenciada e individualista.
Como resultado, separaram-se da manta os retalhos que não serviam o propósito da manta - que apenas a dilaceravam internamente. E permaneceram aqueles retalhos que - agora que eram conhecidos e valorizados pela manta - realmente encarnavam a identidade e realização do "ser manta", guiados agora por objectivos com valor.

A manta tornou-se assim mais pequena. Foi necessário coser novas bainhas - curar feridas - pelos retalhos que tinham partido.
Mas, acima de tudo, a manta tornou-se mais Manta - agora maiúscula não na dimensão mas na sua índole. Pois conhecia cada parte de si: cada pedaço da sua unidade - ouvia, respeitava e amava cada bocadinho daquilo que a tornava uma manta feliz.


Moral da história:
Conheces os teus retalhos?
Quais deles serão melhor descoser?
Qual o propósito que queres seguir - que os retalhos que te compõem querem seguir?
Conhece os teus retalhos - cada um conta uma história, um desejo, um medo, uma alegria.
Pois até a manta se tornou mais feliz quando deixou de ser uma "senhora manta" e passou a ser uma manta para uma senhora (ou um senhor, uma pessoa, este ou aquele) - para servir.



14.11.2012



Era uma vez um chapéu

Era uma vez um chapéu.
O chapéu era muito chique, rijo e preto. O chapéu adorava passear pelas cabeças de executivos, chefes de família e senhores de charuto - e endireitava os seus vincos rijos de chapéu sempre que era gentilmente retirado da cabeça para ajudar o seu cavalheiro enchapelado a cumprimentar uma donzela que passava.
O chapéu morava numa chapelaria de aluguer em Zurique nos anos 20 - que melhor destino poderia ter escolhido um chapéu? O chapéu orgulhava-se da sua sorte e vangloriava-se aos outros chapéus que via de passagem: à boina na cabeça do moço de recados, ao gorro colorido na cabeça da menina, à chapeleta de plumas na cabeça da relojoeira que via à entrada da cinemateca: "Olhem para mim: sou o chapéu mais bonito da cidade, passeio-me em cabeças ricas de toda a idade e nunca me aborreço, pois cada dia uma nova cabeça eu conheço."

Um certo dia de Outono em que chovia, o chapéu foi requisitado para coroar de estatuto a cabeça de um jovem banqueiro, como retoque final de uma receita de confiança e coragem para este pedir a mão em namoro de uma lolita sonhadora - que, por sinal, não tolerava um chapéu na sua cabeça por mais tempo que o necessário para causar impressão, mas que para esta ocasião se enchapelou com o chapéu frou-frou na cabeça e a devida renda que dele pendia a tapar metade do seu olho direito.
Ora, o nosso chapéu muito preto, rijo e chique, quando se viu a ser tirado da cabeça cheirosa do jovem banqueiro para cumprimentar a donzela de chapéu frou-frou, ficou de tal modo abismado com tal beleza e sublimidade do chapéu frou-frou, que tropeçou das mãos do banqueiro para a calçada poeirenta de Zurique - e se tornou assim um pouco menos preto, menos rijo e menos chique.
A partir desse momento, o chapéu sonhava com o dia em que pudesse pertencer ao guarda-fatos do jovem banqueiro, para poder viver feliz para sempre ao lado do chapéu frou-frou da lolita donzela.

Chegou o dia em que o banqueiro e a lolita foram escolher os chapéus que os iriam acompanhar na sua festa de noivado e para o resto da sua vida de casal como chapéus-mor primogénitos.
A lolita donzela já tinha escolhido: era o seu querido chapéu frou-frou, pois era o único que conseguia tolerar na sua pequena cabeça de lolita por um período de tempo suficientemente longo para lhe permitir dar a impressão à sociedade de que já era adulta.
O jovem banqueiro não sabia, pois sempre tinha experimentado tantos chapéus ao longo da sua curta vida de jovem banqueiro: altos, baixos, rijos, moles, chiques, casuais, pretos, castanhos - tantos, que já nem sabia qual o norte da sua cabeça.
Então disse assim à lolita:
- Querida, não consigo escolher um. E se continuasse sem chapéu e a alugar diferentes chapéus, como tenho feito até aqui na minha vida de banqueiro solteiro? Afinal, não é de chapéus que se faz o nosso amor...
E a lolita respondeu assim:
- Hás-de escolher um só chapéu, como escolheste uma só donzela. O amor e o casamento baseia-se tanto num chapéu, como numa aliança, numa casa ou num nome. Não quererei casar contigo, jovem banqueiro, se não souberes com que chapéu vestir a tua cabeça; duvidarei até se tens cabeça, se não souberes o norte do teu chapéu.

Mas o Inverno foi passando, foi-se aproximando a data marcada para o noivado, e o jovem banqueiro continuava sem chapéu. A jovem lolita inchava e desinchava as têmporas de ansiedade, o chapéu frou-frou vincava-se e desvincava-se de desorientação por não ver o seu par, e o nosso caro chapéu preto, rijo e chique continuava estacionado na chapelaria de Zurique, rezando avé-chapéus ao deus dos chapéus para poder enamorar o chapéu frou-frou que tinha encantado o seu coração de chapéu na cabeça da lolita.

Um belo dia, estava a lolita sonhadora perdida nos seus pensamentos, enquanto passeava o chapéu frou-frou pela Primavera de Zurique, quando se chocou de encontro a um poeta-pintor despenteado que, igualmente perdido em si, passeava pela Primavera de Zurique o seu recém-adquirido-para-sempre chapéu - que era, nada mais nada mais, que: sim, o nosso caro chapéu preto, rijo e chique.
Escusado será dizer que o chapéu preto vincou-se de contente ao cruzar os seus olhos de chapéu com os olhos de chapéu do chapéu frou-frou.
Escusado será também dizer que o poeta-pintor despenteado logo ali poetizou e pintou a lolita sonhadora, sem vésperas nem cerimónias.
E a lolita sonhadora - sonhadora que era - logo ali se rendeu e, desde esse dia em diante, todos os seus sonhos passaram a ser desenhados à volta do poeta-pintor, tão despenteado - mas tão cheio de chapéu, tão senhor do seu chapéu.

Um outro belo dia, os nossos chapéus apaixonados - que não aguentavam mais de paixão e queriam enchapelar-se um ao outro - pegaram na cabeça dos seus donos e levaram-nos a passear pelo Verão de Zurique, lado a lado. Foi então que, logo ali junto à fonte, no cruzamento da praça velha, o poeta-pintor pediu a mão da lolita em casa-amor-amento - cada qual encabeçando o chapéu que tinha escolhido para os enchapelar para todo o sempre.
Ainda mal a lolita tinha acabado de anuir, quando o chapéu preto se inclinou para o chapéu frou-frou e o beijou com o seu fervor de chapéu preto - agora ainda mais rijo e um pouco menos chique. Logo ali se enchapelaram, sem vésperas nem cerimónias, saltando para fora das cabeças dos seus donos recém-enoivados - tornando-se assim o poeta-pintor ainda mais despenteado, e a lolita ainda mais sonhadora, com os seus cabelos soltos ao vento.

É claro que foram enchapeladamente felizes para sempre.

Quanto ao jovem banqueiro, diz-se que até ao momento ainda não conseguiu decidir-se pelo chapéu com que quer ficar para sempre e que acabou por montar um negócio de aluguer de chapéus para outros temporariamente-eternos e desenchapelados como ele.

Fim.







Moral da história - na perspectiva do jovem banqueiro:
Sempre que não fazes algo, o tempo fá-lo por ti. Tenta saber sempre o que queres (qual é o teu chapéu?) - e depois de o saberes: conquista-o (compra o chapéu). Alugar chapéus (experimentar, testar, planear) é bom, mas há um ponto em que tens que saber escolher (qual a tua prioridade?). Estás disposto a abdicar do aluguer de chapéus, para comprar o melhor chapéu da chapelaria - esse que levará à felicidade (a vida com o chapéu frou-frou)? Mais vale seres um poeta-pintor despenteado que sabe escolher o seu chapéu, do que um jovem banqueiro com todo o potencial para ser enchapelado com o melhor chapéu do mundo, mas que depois não toma o passo final da escolha - e tudo perde.

(Na perspectiva das outras personagens, pensem vocês, porque eu já estou com sono).



27.03.2012. - 4:30





quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

O boi, o cisne e o palácio

Era uma vez um boi branco que morava num palácio de cristal com um cisne transparente.
- Que lindo cisne - dizia o boi.
E o cisne:
- Obrigada, caro boi. És boi, mas és branco, como eu gostaria de ser. Eu te venero, boi. Mas se sou transparente, como me consegues ver?
- Não te vejo a ti, mas as paredes do meu palácio. Sei que estás aí: eu te ouço e sinto as tuas penas ásperas a tocar no meu precioso pêlo de boi branco. És um testemunho da beleza do meu palácio. Por isso igualmente te venero, cisne.
- Sim, boi. Tu és branco, como eu deveria ser. Eu sou transparente, como as paredes do teu palácio - amas o teu palácio, logo amas a minha transparência. Aí jaz a base do nosso mútuo amor.

E viveram felizes para sempre.


Um dia, o boi pergunta ao cisne:
- Ó cisne, porque és tu transparente e não branco, como gostarias e deverias ser enquanto cisne?
E responde o cisne:
- Boi, eu sou branco. Mas tu tanto amas o teu palácio, que até em mim vês a sua cor transparente. A tua brancura tão branca reflete-se no cristal do palácio e cega-te os olhos de boi, meu caro boi. E como o teu amor por mim se deve à minha cor transparente - igual às paredes do teu palácio - esse amor também te cega e assim me vês transparente - que é o mesmo que dizer que não me vês. E assim eu te confirmo boi que, aos teus olhos, sou transparente.
E diz o boi:
- Hum.
E pergunta o cisne:
- E tu, boi, porque és branco?
Responde o boi:
- Meu belo e adorado cisne, eu não sou branco. Na verdade, tenho cor de boi. Se me vês branco, foste enganado pelo teu amor-próprio. Pois só me consegues amar se eu for branco, como tu. E como o teu amor por mim se deve à minha cor branca - igual às tuas penas - esse amor também te cega e assim me vês branco. E assim eu te confirmo que, aos teus olhos, sou branco.

E responde o cisne:
- Quack!
E responde o boi:
- Muuu...
E assim termina a ilusão do cisne transparente e do boi branco, que afinal não passavam de dois animais perdidos no amor à sua própria beleza - no egoísmo mútuo e reciprocamente alimentado por um amor interessado em si.

E viveram infelizes para sempre.

Resta dizer que o palácio de cristal nunca existiu. Era uma ilusão fabricada do boi com origem num sonho em que ele tanto acreditou, que o começou a ver. Porque afinal diz-se que "basta acreditar para alcançarmos os nossos sonhos".

Fim.


Moral da história
O narcicismo auto-bajulatório exarcebado pode cegar a nossa visão do outro, vendo o outro como "transparente" (=não ver o outro) ou permitindo-nos ver apenas a aquilo que queremos ver - aquilo que contribui para a nossa alimentação narcísica individualista.
O amor que se baseia na fertilização mútua do ego, mais cedo ou mais tarde, será desmascarado pela verdade, que estilhaça a ilusão sem piedade. E, para sermos sinceros, mais vale uma verdade crua e infeliz, que uma feliz e oca ilusão.

"Somewhere along the way I forgot how to love" - Alexander Lowen in Narcissism: Denial of the True Self.


06.11.2011

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Ama-te

Gostava que toda a gente se amasse: auto-amasse.
Que toda a gente soubesse que cada um de nós é o epicentro do seu mundo: a pessoa mais importante da sua vida: o núcleo gravítico em torno do qual gira tudo o que existe: o rei ou rainha do seu destino e conduta. Porque somos - és.
Gostava que toda a gente tivesse um auto-amor tão grande que, mesmo que as circunstâncias da sua vida se desmoronassem, continuariam felizes por viver, porque se têm a si próprias.

E vives sempre através de ti.

Só depois de te colocares num zénite tão elevadamente inabalável é que serás capaz das maiores acções de humildade e abnegação pessoal - sem medo que estas te derrubem ou reduzam a força da tua dignidade.
Só os grandes é que conseguem dar-se sem nada perder, porque sabem que são uma fonte inesgotável de abundância.
Só os grandes é que conseguem perdoar sem sentir que o perdão é uma aprovação tácita da infracção, porque sabem que ao perdoar estão a abrir os portões da sua própria liberdade.

Esta civilização europeia (e sejas crente, não crente ou semi-crente estás inserido nela e és ela até ao tutano) que foi construída com base nos valores cristãos (imbuídos no Direito europeu, nas regras sociais, na ética básica da relações e até nos sinais de trânsito - tanto que, quer sejas crente, não crente ou semi-crente, levas com eles todos os dias no teu subconsciente) tanto aprendeu sobre a história do sacrifício, humildade e contenção modesta (e bem).
Mas muito pouco aprendeu sobre a auto-afirmação (que, sem querer soar catequética mas já soando, até Cristo a praticou perante os doutores e sacerdotes, sem medo de lhes dizer alto e a bom som que ele era muito mais do que eles julgavam que era "com tal autoridade"); a exigência de sermos bons - "bom" não só de bondade mas também de excelência (não sou a maior letrada mas sei que algures no nosso livro cristão nos ordena "sê perfeito"); e a busca do melhor para nós sem falsos contentamentos (afinal está escrito "pede e ser-te-á dado").

Aprendi que o perigo não está na arrogância - que frequentemente ultrapassa o auto-conceito real de quem a tem de uma forma quase humorística. O perigo está na subestimação pessoal.

Por um lado, gostares-te menos do que deverias é uma tremenda falta de respeito perante quem te criou (Deus, o universo, as tuas células, os teus progenitores, ou o que quer que acredites ou semi-acredites). Por outro lado, gostares-te menos do que deverias irá resultar em que não exijas ser a melhor versão de ti próprio (porque afinal não és bom nem importante) - o que é no mínimo um despredício de matéria e energia, biologica e fisico-quimicamente falando; e irá resultar em que não exijas da vida o melhor para ti (porque afinal se não te achas "o rei" da tua vida como é que vais ter legitimidade para lhe pedir alguma coisa? - quanto mais exigir!).

Por isso, pela tua saúde (e, claro, também pela minha que sou importante): ama-te: sente o amor a circular por ti, para ti, através de ti - para nós, pelo mundo.

Obrigado.

15.01.2012
6:00

pintura by Akiane Kramarik, 13 anos

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Segue-te

Sempre que te desvias de ti, coisas más acontecem: sentes desconforto, insatisfação, insaciedade, desorientação, desalinhamento, desequilíbrio - e ficas doente; ou comes demais ou de menos; ou crescem todo o tipo de desejos insaciáveis de consumo e preenchimento pessoal (que não são mais que ciclos intermináveis de vícios cuja overdose resulta mais em dor do que em prazer).
Sempre que te desvias de ti, atrasas um passo na tua auto-realização: desfazes a evolução que tinhas desenvolvido; cometes erros que já tinhas cometido e com os quais aprendido; atrasas-te um capítulo na história do teu crescimento - e depois tens que te pedir desculpa; ou voltar a lembrar-te do que já sabias; ou fazer as pazes contigo novamente.

Então, chega cá o ouvido, o coração e alma; deixa-me abrir o teu encéfalo e depositar na memória consciente a longo prazo do teu córtex cerebral a seguinte informação a reter em letras florescentes de néon luminoso intermitente: não te desvies de ti - o que quer que isso seja para ti (uma crença, um ideal, uma paixão, um talento, ou simplesmente algo que te faça sentir vivo e em harmonia): para mim, eu sei bem o que é.

Se já conheces o sabor da tua essência (a origem e o fruto da tua essência) - não o percas.
Guarda cada detalhe desse sabor nas papilas gustativas da tua inteligência sensível. E não permitas que os outros sabores que vais experimentando (e que, sublinho, deves ir experimentando, pois é do contacto com a diferença que nos tornamos ainda mais iguais a nós próprios - porque até o diamante para ser polido precisa de conviver com uma áspera lixa) se tornem em ti mais proeminentes que o sabor da tua essência original - sob perigo de, se essa proeminência de um sabor estrangeiro em ti ocorrer por um período de tempo superior ao razoável, a certa altura já nem sabes a que é que sabes.

Eu voltei a saber a que é que saibo - e sabe bem. Espero que saibas também o teu sabor e sigas tudo o que sabe a ti.



23.01.2012
1:12

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Não somos o que fazemos

Somos o que somos, não somos o que fazemos.

O que fazemos é apenas uma projecção do que somos; é o eu aplicado num uso prático; é o ser com um verbo atrelado.
O que fazemos é - está certo - uma parte da nossa reflexão no espelho da vida. O que fazemos é (aceito) um fruto da grande árvore do nosso ser, pelo que o sabor do fruto poderá deixar adivinhar a índole e o pulsar das raízes do âmago do nosso ser.

Mas o que fazemos é, por vezes - socialmente, atrevo-me a dizer que é: sempre -, hipervalorizado e equiparado ao que somos. Ou não fosse a resposta à típica pergunta "o que é que queres ser quando fores grande?" invariavelmente uma profissão - um "fazer": que, na verdade, constitui apenas uma ínfima parte do nosso amplo ser (cuja maior dimensão está submersa como um gigante iceberg do qual só é visível a ponta à superfície do oceano).

Dizer que ser se reduz a fazer é tomar a parte pelo todo e casmurramente acreditar numa mentira socialmente fabricada para nos amestrar - fazendo crer que nascemos só para uma função (pelo que do insucesso resulta a depressão).

Ora, a verdade bruta é esta: o que fazes é apenas (e no máximo) um meio para o que és - já és tudo antes de fazer, pelo que não precisas de fazer nada para já seres. O Ser existe antes, depois e para além da versão prática de ti mesmo.

Agora que sabes isto (e sentes paz e confiança): anda lá, mexe-te e faz. Não autorizo que o conhecimento desta verdade legitime a tua preguiça.






















Curiosidade: nesta capa dos Sigur Rós está escrito: "cold water senses the spirit of free play"



15.01.2012
11:18


quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Partes de mim

Qual é a parte de mim que tem razão?
- É a parte que analisa, disseca e atribui razoavelmente a cada i um ponto?
- Ou é a parte que se abstém de pensamento, sente o avesso da verdade e deixa os pontos flutuarem por cima, pelo meio e por debaixo dos i's à sua bel-vontade?

Qual é a parte de mim que vê a verdade?
- É a parte inteligente, toda-poderosa, de perspicácia felina e frieza fatal?
- Ou é a parte que sente sem antes nem amanhã; a parte onde palpita o presente da crença inocente que o que existe é suficiente?

Qual é a parte de mim que é mais igual a mim?
- É a parte céptica de crosta de sarcasmo, que joga dados de felicidade inabalável (ai de quem a ameaçar!) e é indesiludível porque já não compra a crédito a ilusão?
- Ou é a parte que nunca cresce, que começa sempre de novo; que insiste em acreditar no sentido cândido das coisas; que reza, sonha e suspira?

Qual é a parte de mim mais evoluída?
A parte-mundo ou parte-céu?
A parte-corpo ou a parte-alma?
A parte-sobrevivência ou a parte-sonho?
A parte-vivida ou a parte-imbuída?

Pim, pam, pum - qual é?

...E tenho mesmo que escolher uma parte, em prol da consistência e sistematidade de conduta? Ou será que a rectidão da verdade está no frágil balanço em equilibrar a todo o momento as duas partes?


12.01.2012

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Porque é que eu escrevo?

Eu escrevo porque sinto a nostalgia do tempo que se escapa como areia entre as mãos diante dos meus olhos, sem por vezes eu ter consciência plena daquilo que cada instante significou para o meu crescer exterior e a consolidação do ser interior que construo - tentando ser em cada momento mais igual a mim própria do que era no anterior; ou tentando ser em cada momento mais igual àquilo que pretendo ser (a utilização de uma ou outra concepção hipotética está apenas dependente da resposta à pergunta se o ser humano parte à nascença do "0" ou do "1").

Eu escrevo em prosa para exprimir as minhas ideias e emoções o mais concretamente possível, já que estas são dotadas de uma imaterealidade abstracta díficil de ser contornada até por mim - logo, para um imaginário leitor seriam indecifráveis se apresentadas sob o véu esfumante, hermético e ilusório de um poema ambíguo e subjectivo.

22.05.2002

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Pede e ser-te-á dado

Não há nada que não possas pedir e não possas ter. Pois tudo o que é concebível pela mente humana é passível de existir algures no tempo e espaço - aliás: já existe, mesmo que apenas em ti. E tu és o princípio (e o fim) de tudo - não és?

05.01.2012

domingo, 8 de janeiro de 2012

EXcesso

O exagero é a única forma de se viver equilibradamente. Viver medianamente é uma afronta à preciosidade da vida. Se tens bom senso e sensibilidade sabes que não existe vida sem momentos de explosão, de excesso, de extrapolação da existência. Mais: esta é a única forma de vida - de sentires o pulso da vida em ti e de ti na vida.
Du-vida(s)?

06.01.2012

domingo, 1 de janeiro de 2012

A inalienável leveza do ser


transcrito de antigo diário, escrito em 07.12.2002



O ser a sua leveza são qualidades inseparáveis para uma salubridade que, por ser imperceptível, brota do âmago da origem.
É ser quase não sentindo o peso da nossa presença;
é moldarmo-nos aos contornos da circunstância da natureza; é fazer do fluxo sanguíneo pessoal uma ligação à elementar flexibilidade das veias do mundo.
É agir não segundo padrões pré-convencionados;
é julgar não a partir de juízos formulados anteriormente à situação presente; é não querer Ser dentro de uma linha de orientação auto-imposta que se baseia tão somente em limites restritivos a tudo aquilo que poderíamos de facto Ser.
Ser simplesmente o que somos; não o que achamos que somos; ou o que os outros acham que somos. Estas duas últimas concepções afectam redondamente o ser, na medida em que estabelecem uma sanidade pautada e previsível - o que é estritamente útil dada a complexidade da malha social e a necessidade de uma construção da realidade em que o indivíduo se revê em face do papel que ocupa na massa - mas amorfam quaisquer outras possibilidades não exploradas, que estenderiam os horizontes pessoais das perspectivas exteriores de cada um.

O que eu quero dizer é que só quando nos apercebemos que estamos a ser é que estamos a ser autenticamente. E só quando as teias não ofuscam os nossos olhos é que podemos ter uma visão virgem de tudo o que é selvagem e puro.
Isto é a inalienável leveza do ser.
Só assim poderemos ver um dia (pode ser ao amanhecer enquanto o melro pia; ou num dia de frio ao sair de casa; ou quando olhamos para o céu e vemos as estrelas) - num dia qualquer - que o mundo é redondo, suave e grande - maior do que a nossa vista (mesmo sem teias) pode conter. Mas não tão grande como aquilo que podemos Ser.