terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Razão de viver

transcrito de antigo diário, escrito em 22.01.2002


Tenho pena das pessoas que acham que existe o destino. Elas pensam isso para compensarem o facto de não saberem o que estão cá a fazer e o facto de não quererem admitir que sabem o quão são insignificantes neste universo infinito de matéria gigantesca.
"E o homem, em seu orgulho, criou Deus, à sua imagem e semelhança" - disse Friedrich Nietzsche. Com esta referência não quero dizer que Deus não existe. Aliás, na concepção que eu tenho, ele existe. Mas acho que todos os escritores, filósofos e etc. que se referiam ao absoluto que desconhecem como algo inatingível e que diziam que isto cá na Terra é só um reflexo do absoluto...sei lá, acho que devem ter sido infelizes e deixam-me cá uma nostalgia, um vazio, uma pena...É que eles passaram a vida inteira a tentar encontrar a raiz existencial.

E - eu vos-vos dizer - o que acontece é que não há uma razão para nós existirmos. Nós não somos assim tão indispensáveis ao universo só pelo simples facto de existirmos. Pelo contrário: somos consumidores da matéria que poderia alimentar outros seres em vez de nós. É triste, mas é assim. E se soubermos aproveitar a situação, até nem é assim tão triste.
Não tem que haver uma razão para existir, a não ser aquela que nós próprios criamos: exactamente. Cada um (condicionado pelo meio, genes, decorrências) é que vai desenvolver na sua inteligência a razão de viver.
E não vale a pena ter crises existenciais e sofrer por isso. Para quê? Nunca - nem aqui na Terra, nem aqui na Terra - iremos saber mais do que aquilo que o nosso organismo o permite (com todos os seus sentidos e os 100% de cérebro - não apenas os 10% que são os que hoje se conhecem serem responsáveis pelo pensamento acessível pelo raciocínio).
O que acontece é que somos demasiado inteligentes para termos consciência do que não sabemos; e demasiado burros para não conseguirmos saber aquilo de que temos consciência não saber.

 

Somos uma mísera partícula no país: na Terra: no Sistema Solar: no Braço de Orion da nossa galáxia: na Via Láctea: no Exame do Grupo Local de galáxias: no Superexame local - que é apenas um dos milhões de Superexames de galáxias.

Mas o que conta é o que fazemos na medida em que nos é acessível. Porque é um milagre sagrado e mágico este da vida e é uma honra fazer parte de uma obra tão grandiosa, bonita e infinita como esta. No meio de tantos pedregulhos, pós e gás, o nosso pedregulho caseiro é mesmo um fenómeno exemplar de desenvolvimento da vida.




-Quantas hipóteses tenho de a conquistar, Mary?
-Muito poucas.
-Quantas? Assim, digamos: uma em 100?
-Bem, eu diria: uma num milhão.
-Ah! Então diz-me que há uma hipótese? Yeah!
(do Dumb and Dumber:
http://www.youtube.com/watch?v=qULSszbA-Ek)



Tens medo de receber o infinito? ∞

Às vezes não estamos preparados para o infinito. Sabemos que somos o mundo, sabemos que podemos alcançar o tudo - mas temos medo (medo de quê?). Medo: de sermos demasiado pequenos para abraçar o tudo que queremos ter (mas - sim - nós somos pequenos, e é por sermos pequenos que somos grandes); do tudo nos insuflar de vida e de repente descobrirmos que podemos voar - e, não, às vezes não queremos voar (porquê?); queremos permanecer algemados à constância enfadonha e segura da terra.

Às vezes não estamos preparados para o infinito. Não estamos: sabemos que ele existe (já o vimos, já o conhecemos, já o compreendemos) e gostamos de saber que ele existe - mas saber que ele existe é mais uma das paredes confortáveis e enclausuradoras que edificamos à nossa volta, para nos assegurarmos de que "está tudo bem assim como está". Não estamos: corremos a maratona, vencemos a corrida, bebemos as lágrimas de suor espremido, mas (por algum estranho motivo) uma cãibra de cobardia faz-nos procrastinar a reclamação do troféu.

Às vezes não estamos, e continuamos a não estar, preparados para o infinito. Temos medo: medo de receber; medo que o infinito não caiba em nós e que nós não saibamos ser o infinito como deveríamos ser, quando ele estiver em nós (quando fores o infinito).
Preferimos continuar aprisionados em condicionalidades hipotéticas, em realidades conjuntivas, em presentes imperfeitos, em equações não resolvidas. Preferimos permanecer no potencial, no sonho, no que "poderia ser se".

Porquê? Porque temos medo. Temos medo de olhar para a flor desabrochada e nela reconhecermos a fragilidade da beleza que passa; temos medo de ter o tudo e vermos como é grande tudo aquilo que podemos perder - temos medo de nos perder.

Então, preferimos ser só metade do que poderíamos ser. Porque assim continuaremos a ter só um pé no infinito (e o outro, aflito, no finito) - e, então, assim, é só metade aquilo que podemos perder; e é só metade o medo de ser; e é só metade o medo de viver; e é só metade o medo de morrer (porque quem não tem nada, não tem nada a perder).

E também é só metade o infinito que poderias ser - e deixa-me te esclarecer: metade do infinito é zero (porque 0 é o número que fica entre os números infinitos positivos +∞ e os números infinitos negativos -∞). Se fores metade do que poderias ser, não és meio, és nada: és um nada.

Por isso, não tenhas medo de te perder - e ser o infinito que podes, agora, ser.




27.03.2012



segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O infinito abortado

Quero ser tempo: tempo para ser tua. Não quero ser sujeito, nem verbo, nem adjectivo teu; quero ser aquela substância omnipresente – e sempre latente – que te absorve; ser sempre presente. Posso ser?
Estou farta (farta é eufemismo), lucidamente intoxicada de ausência – ausência de presença.
Dá-me, dá-me já, ou abstém-te para sempre. És um pseudo-tudo: equação perfeita sem resolução final, potencial sem potência, objectivo sem objecto; prezas-me, mas menosprezas-me e desesperas-me, pela tua dormência letárgica plasticamente saudável – essa amorfia que abomino –, pela tua intensidade guilhotinada, pela voz surda, olhar mudo: és um infinito abortado.
Fui tempo. Agora sou saudade.

foto: buraco negro na Via Láctea


Texto escrito em Dezembro de 2011, como resultado de um exercício de sintaxe que me foi dado pelo escritor Pedro Chagas Freitas e que consiste em transformar o seguinte esquema de números de palavras e pontuação num texto:

3: 4. 4, 2, 3; 5 – 3 – 3; 3. 2?
2 (3), 4 – 3.
1, 2, 4. 3: 5, 3, 3; 1, 4, 6 – 4 –, 5, 3, 2: 4.
2. 3.

Experimentem!

      

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

A manta de retalhos

Era uma vez uma manta de retalhos.
A manta era muito grande e colorida, composta por muitos retalhos, cada um com a sua história; cada um representando uma parte de si.

Mas a manta não conhecia a história e a origem de cada retalho - a manta não se conhecia.

A manta só sabia que era uma grande manta de retalhos, maior do que qualquer outra que tivera visto. Era uma manta maiúscula no mundo das mantas, sendo sempre colocada por cima de todas as outras: nas camas, nos sofás, no colo dos avós, no chão do quarto de brincar das crianças.
A manta julgava-se uma senhora manta, rainha dos retalhos - seus subservientes súbditos.

Até que um belo dia de verão, os retalhos decidiram que queriam ser independentes e ser donos do seu próprio destino.
Um retalho pensou: "eu quero ser um lenço da mão de um executivo de valores tradicionais e estilo inimitável; quero ser o toque final de primor na sua vestimenta".
Outro retalho fantasiou: "eu quero ser um cachecol a afagar o pescoço de uma menina de pele de seda; quero ser o seu conforto familiar em forma de tecido nos dias de frio".
E ainda, um outro retalho divagou: "eu quero ser um pano de limpeza nas mãos ásperas de um marinheiro; quero ser útil no asseio de um meio de transporte tão esplendoroso como é um navio, viajando ao sabor do vento".
Ora, quando a cada retalho começou a pensar por si próprio - e mais -, quando cada um começou a verbalizar as suas aspirações individuais aos outros retalhos, mais retalhos foram se descobrindo a si próprios, explorando sonhos que nunca imaginaram serem possíveis de existir, pois sempre suposeram que só poderiam subsistir enquanto fossem parte de uma manta orgulhosa.

Foi então que a grande manta se apercebeu que, afinal, não era uma grande manta, mas sim um conjunto de retalhos que até então desconhecia. E que se não começasse a conhecer e a prestar atenção a cada bocado de si, em breve estaria morta, desfeita, esfarrapada.

Posto isto, a manta convocou uma assembleia para todos os retalhos, em que cada retalho deu voz à sua expressão interior: a manta deixou pulsar cada ponto do seu ser, cada bainha mal cosida, cada remendo estortegado.
Depois de serem ouvidos todos os desejos de cada retalho, seleccionaram-se dois ou três que poderia ser realizados enquando manta - enquanto retalhos unidos:
apagar o fogo do corpo de vítimas num incêndio;
aconchegar um sem-abrigo num albergue;
decorar a parede de uma sala de gosto estético alternativo.
Os restantes desejos foram classificados como desviantes do destino do "ser manta", pois só poderiam ser realizados por retalhos individuais enquanto retalhos.

E foram a votos:
quem quer ser parte da manta, perseguindo os novos propósitos definidos por todos os retalhos;
e quem quer ser retalho, vivendo um função mais simples mas mais diferenciada e individualista.
Como resultado, separaram-se da manta os retalhos que não serviam o propósito da manta - que apenas a dilaceravam internamente. E permaneceram aqueles retalhos que - agora que eram conhecidos e valorizados pela manta - realmente encarnavam a identidade e realização do "ser manta", guiados agora por objectivos com valor.

A manta tornou-se assim mais pequena. Foi necessário coser novas bainhas - curar feridas - pelos retalhos que tinham partido.
Mas, acima de tudo, a manta tornou-se mais Manta - agora maiúscula não na dimensão mas na sua índole. Pois conhecia cada parte de si: cada pedaço da sua unidade - ouvia, respeitava e amava cada bocadinho daquilo que a tornava uma manta feliz.


Moral da história:
Conheces os teus retalhos?
Quais deles serão melhor descoser?
Qual o propósito que queres seguir - que os retalhos que te compõem querem seguir?
Conhece os teus retalhos - cada um conta uma história, um desejo, um medo, uma alegria.
Pois até a manta se tornou mais feliz quando deixou de ser uma "senhora manta" e passou a ser uma manta para uma senhora (ou um senhor, uma pessoa, este ou aquele) - para servir.



14.11.2012



Era uma vez um chapéu

Era uma vez um chapéu.
O chapéu era muito chique, rijo e preto. O chapéu adorava passear pelas cabeças de executivos, chefes de família e senhores de charuto - e endireitava os seus vincos rijos de chapéu sempre que era gentilmente retirado da cabeça para ajudar o seu cavalheiro enchapelado a cumprimentar uma donzela que passava.
O chapéu morava numa chapelaria de aluguer em Zurique nos anos 20 - que melhor destino poderia ter escolhido um chapéu? O chapéu orgulhava-se da sua sorte e vangloriava-se aos outros chapéus que via de passagem: à boina na cabeça do moço de recados, ao gorro colorido na cabeça da menina, à chapeleta de plumas na cabeça da relojoeira que via à entrada da cinemateca: "Olhem para mim: sou o chapéu mais bonito da cidade, passeio-me em cabeças ricas de toda a idade e nunca me aborreço, pois cada dia uma nova cabeça eu conheço."

Um certo dia de Outono em que chovia, o chapéu foi requisitado para coroar de estatuto a cabeça de um jovem banqueiro, como retoque final de uma receita de confiança e coragem para este pedir a mão em namoro de uma lolita sonhadora - que, por sinal, não tolerava um chapéu na sua cabeça por mais tempo que o necessário para causar impressão, mas que para esta ocasião se enchapelou com o chapéu frou-frou na cabeça e a devida renda que dele pendia a tapar metade do seu olho direito.
Ora, o nosso chapéu muito preto, rijo e chique, quando se viu a ser tirado da cabeça cheirosa do jovem banqueiro para cumprimentar a donzela de chapéu frou-frou, ficou de tal modo abismado com tal beleza e sublimidade do chapéu frou-frou, que tropeçou das mãos do banqueiro para a calçada poeirenta de Zurique - e se tornou assim um pouco menos preto, menos rijo e menos chique.
A partir desse momento, o chapéu sonhava com o dia em que pudesse pertencer ao guarda-fatos do jovem banqueiro, para poder viver feliz para sempre ao lado do chapéu frou-frou da lolita donzela.

Chegou o dia em que o banqueiro e a lolita foram escolher os chapéus que os iriam acompanhar na sua festa de noivado e para o resto da sua vida de casal como chapéus-mor primogénitos.
A lolita donzela já tinha escolhido: era o seu querido chapéu frou-frou, pois era o único que conseguia tolerar na sua pequena cabeça de lolita por um período de tempo suficientemente longo para lhe permitir dar a impressão à sociedade de que já era adulta.
O jovem banqueiro não sabia, pois sempre tinha experimentado tantos chapéus ao longo da sua curta vida de jovem banqueiro: altos, baixos, rijos, moles, chiques, casuais, pretos, castanhos - tantos, que já nem sabia qual o norte da sua cabeça.
Então disse assim à lolita:
- Querida, não consigo escolher um. E se continuasse sem chapéu e a alugar diferentes chapéus, como tenho feito até aqui na minha vida de banqueiro solteiro? Afinal, não é de chapéus que se faz o nosso amor...
E a lolita respondeu assim:
- Hás-de escolher um só chapéu, como escolheste uma só donzela. O amor e o casamento baseia-se tanto num chapéu, como numa aliança, numa casa ou num nome. Não quererei casar contigo, jovem banqueiro, se não souberes com que chapéu vestir a tua cabeça; duvidarei até se tens cabeça, se não souberes o norte do teu chapéu.

Mas o Inverno foi passando, foi-se aproximando a data marcada para o noivado, e o jovem banqueiro continuava sem chapéu. A jovem lolita inchava e desinchava as têmporas de ansiedade, o chapéu frou-frou vincava-se e desvincava-se de desorientação por não ver o seu par, e o nosso caro chapéu preto, rijo e chique continuava estacionado na chapelaria de Zurique, rezando avé-chapéus ao deus dos chapéus para poder enamorar o chapéu frou-frou que tinha encantado o seu coração de chapéu na cabeça da lolita.

Um belo dia, estava a lolita sonhadora perdida nos seus pensamentos, enquanto passeava o chapéu frou-frou pela Primavera de Zurique, quando se chocou de encontro a um poeta-pintor despenteado que, igualmente perdido em si, passeava pela Primavera de Zurique o seu recém-adquirido-para-sempre chapéu - que era, nada mais nada mais, que: sim, o nosso caro chapéu preto, rijo e chique.
Escusado será dizer que o chapéu preto vincou-se de contente ao cruzar os seus olhos de chapéu com os olhos de chapéu do chapéu frou-frou.
Escusado será também dizer que o poeta-pintor despenteado logo ali poetizou e pintou a lolita sonhadora, sem vésperas nem cerimónias.
E a lolita sonhadora - sonhadora que era - logo ali se rendeu e, desde esse dia em diante, todos os seus sonhos passaram a ser desenhados à volta do poeta-pintor, tão despenteado - mas tão cheio de chapéu, tão senhor do seu chapéu.

Um outro belo dia, os nossos chapéus apaixonados - que não aguentavam mais de paixão e queriam enchapelar-se um ao outro - pegaram na cabeça dos seus donos e levaram-nos a passear pelo Verão de Zurique, lado a lado. Foi então que, logo ali junto à fonte, no cruzamento da praça velha, o poeta-pintor pediu a mão da lolita em casa-amor-amento - cada qual encabeçando o chapéu que tinha escolhido para os enchapelar para todo o sempre.
Ainda mal a lolita tinha acabado de anuir, quando o chapéu preto se inclinou para o chapéu frou-frou e o beijou com o seu fervor de chapéu preto - agora ainda mais rijo e um pouco menos chique. Logo ali se enchapelaram, sem vésperas nem cerimónias, saltando para fora das cabeças dos seus donos recém-enoivados - tornando-se assim o poeta-pintor ainda mais despenteado, e a lolita ainda mais sonhadora, com os seus cabelos soltos ao vento.

É claro que foram enchapeladamente felizes para sempre.

Quanto ao jovem banqueiro, diz-se que até ao momento ainda não conseguiu decidir-se pelo chapéu com que quer ficar para sempre e que acabou por montar um negócio de aluguer de chapéus para outros temporariamente-eternos e desenchapelados como ele.

Fim.







Moral da história - na perspectiva do jovem banqueiro:
Sempre que não fazes algo, o tempo fá-lo por ti. Tenta saber sempre o que queres (qual é o teu chapéu?) - e depois de o saberes: conquista-o (compra o chapéu). Alugar chapéus (experimentar, testar, planear) é bom, mas há um ponto em que tens que saber escolher (qual a tua prioridade?). Estás disposto a abdicar do aluguer de chapéus, para comprar o melhor chapéu da chapelaria - esse que levará à felicidade (a vida com o chapéu frou-frou)? Mais vale seres um poeta-pintor despenteado que sabe escolher o seu chapéu, do que um jovem banqueiro com todo o potencial para ser enchapelado com o melhor chapéu do mundo, mas que depois não toma o passo final da escolha - e tudo perde.

(Na perspectiva das outras personagens, pensem vocês, porque eu já estou com sono).



27.03.2012. - 4:30





quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

O boi, o cisne e o palácio

Era uma vez um boi branco que morava num palácio de cristal com um cisne transparente.
- Que lindo cisne - dizia o boi.
E o cisne:
- Obrigada, caro boi. És boi, mas és branco, como eu gostaria de ser. Eu te venero, boi. Mas se sou transparente, como me consegues ver?
- Não te vejo a ti, mas as paredes do meu palácio. Sei que estás aí: eu te ouço e sinto as tuas penas ásperas a tocar no meu precioso pêlo de boi branco. És um testemunho da beleza do meu palácio. Por isso igualmente te venero, cisne.
- Sim, boi. Tu és branco, como eu deveria ser. Eu sou transparente, como as paredes do teu palácio - amas o teu palácio, logo amas a minha transparência. Aí jaz a base do nosso mútuo amor.

E viveram felizes para sempre.


Um dia, o boi pergunta ao cisne:
- Ó cisne, porque és tu transparente e não branco, como gostarias e deverias ser enquanto cisne?
E responde o cisne:
- Boi, eu sou branco. Mas tu tanto amas o teu palácio, que até em mim vês a sua cor transparente. A tua brancura tão branca reflete-se no cristal do palácio e cega-te os olhos de boi, meu caro boi. E como o teu amor por mim se deve à minha cor transparente - igual às paredes do teu palácio - esse amor também te cega e assim me vês transparente - que é o mesmo que dizer que não me vês. E assim eu te confirmo boi que, aos teus olhos, sou transparente.
E diz o boi:
- Hum.
E pergunta o cisne:
- E tu, boi, porque és branco?
Responde o boi:
- Meu belo e adorado cisne, eu não sou branco. Na verdade, tenho cor de boi. Se me vês branco, foste enganado pelo teu amor-próprio. Pois só me consegues amar se eu for branco, como tu. E como o teu amor por mim se deve à minha cor branca - igual às tuas penas - esse amor também te cega e assim me vês branco. E assim eu te confirmo que, aos teus olhos, sou branco.

E responde o cisne:
- Quack!
E responde o boi:
- Muuu...
E assim termina a ilusão do cisne transparente e do boi branco, que afinal não passavam de dois animais perdidos no amor à sua própria beleza - no egoísmo mútuo e reciprocamente alimentado por um amor interessado em si.

E viveram infelizes para sempre.

Resta dizer que o palácio de cristal nunca existiu. Era uma ilusão fabricada do boi com origem num sonho em que ele tanto acreditou, que o começou a ver. Porque afinal diz-se que "basta acreditar para alcançarmos os nossos sonhos".

Fim.


Moral da história
O narcicismo auto-bajulatório exarcebado pode cegar a nossa visão do outro, vendo o outro como "transparente" (=não ver o outro) ou permitindo-nos ver apenas a aquilo que queremos ver - aquilo que contribui para a nossa alimentação narcísica individualista.
O amor que se baseia na fertilização mútua do ego, mais cedo ou mais tarde, será desmascarado pela verdade, que estilhaça a ilusão sem piedade. E, para sermos sinceros, mais vale uma verdade crua e infeliz, que uma feliz e oca ilusão.

"Somewhere along the way I forgot how to love" - Alexander Lowen in Narcissism: Denial of the True Self.


06.11.2011

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Ama-te

Gostava que toda a gente se amasse: auto-amasse.
Que toda a gente soubesse que cada um de nós é o epicentro do seu mundo: a pessoa mais importante da sua vida: o núcleo gravítico em torno do qual gira tudo o que existe: o rei ou rainha do seu destino e conduta. Porque somos - és.
Gostava que toda a gente tivesse um auto-amor tão grande que, mesmo que as circunstâncias da sua vida se desmoronassem, continuariam felizes por viver, porque se têm a si próprias.

E vives sempre através de ti.

Só depois de te colocares num zénite tão elevadamente inabalável é que serás capaz das maiores acções de humildade e abnegação pessoal - sem medo que estas te derrubem ou reduzam a força da tua dignidade.
Só os grandes é que conseguem dar-se sem nada perder, porque sabem que são uma fonte inesgotável de abundância.
Só os grandes é que conseguem perdoar sem sentir que o perdão é uma aprovação tácita da infracção, porque sabem que ao perdoar estão a abrir os portões da sua própria liberdade.

Esta civilização europeia (e sejas crente, não crente ou semi-crente estás inserido nela e és ela até ao tutano) que foi construída com base nos valores cristãos (imbuídos no Direito europeu, nas regras sociais, na ética básica da relações e até nos sinais de trânsito - tanto que, quer sejas crente, não crente ou semi-crente, levas com eles todos os dias no teu subconsciente) tanto aprendeu sobre a história do sacrifício, humildade e contenção modesta (e bem).
Mas muito pouco aprendeu sobre a auto-afirmação (que, sem querer soar catequética mas já soando, até Cristo a praticou perante os doutores e sacerdotes, sem medo de lhes dizer alto e a bom som que ele era muito mais do que eles julgavam que era "com tal autoridade"); a exigência de sermos bons - "bom" não só de bondade mas também de excelência (não sou a maior letrada mas sei que algures no nosso livro cristão nos ordena "sê perfeito"); e a busca do melhor para nós sem falsos contentamentos (afinal está escrito "pede e ser-te-á dado").

Aprendi que o perigo não está na arrogância - que frequentemente ultrapassa o auto-conceito real de quem a tem de uma forma quase humorística. O perigo está na subestimação pessoal.

Por um lado, gostares-te menos do que deverias é uma tremenda falta de respeito perante quem te criou (Deus, o universo, as tuas células, os teus progenitores, ou o que quer que acredites ou semi-acredites). Por outro lado, gostares-te menos do que deverias irá resultar em que não exijas ser a melhor versão de ti próprio (porque afinal não és bom nem importante) - o que é no mínimo um despredício de matéria e energia, biologica e fisico-quimicamente falando; e irá resultar em que não exijas da vida o melhor para ti (porque afinal se não te achas "o rei" da tua vida como é que vais ter legitimidade para lhe pedir alguma coisa? - quanto mais exigir!).

Por isso, pela tua saúde (e, claro, também pela minha que sou importante): ama-te: sente o amor a circular por ti, para ti, através de ti - para nós, pelo mundo.

Obrigado.

15.01.2012
6:00

pintura by Akiane Kramarik, 13 anos

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Segue-te

Sempre que te desvias de ti, coisas más acontecem: sentes desconforto, insatisfação, insaciedade, desorientação, desalinhamento, desequilíbrio - e ficas doente; ou comes demais ou de menos; ou crescem todo o tipo de desejos insaciáveis de consumo e preenchimento pessoal (que não são mais que ciclos intermináveis de vícios cuja overdose resulta mais em dor do que em prazer).
Sempre que te desvias de ti, atrasas um passo na tua auto-realização: desfazes a evolução que tinhas desenvolvido; cometes erros que já tinhas cometido e com os quais aprendido; atrasas-te um capítulo na história do teu crescimento - e depois tens que te pedir desculpa; ou voltar a lembrar-te do que já sabias; ou fazer as pazes contigo novamente.

Então, chega cá o ouvido, o coração e alma; deixa-me abrir o teu encéfalo e depositar na memória consciente a longo prazo do teu córtex cerebral a seguinte informação a reter em letras florescentes de néon luminoso intermitente: não te desvies de ti - o que quer que isso seja para ti (uma crença, um ideal, uma paixão, um talento, ou simplesmente algo que te faça sentir vivo e em harmonia): para mim, eu sei bem o que é.

Se já conheces o sabor da tua essência (a origem e o fruto da tua essência) - não o percas.
Guarda cada detalhe desse sabor nas papilas gustativas da tua inteligência sensível. E não permitas que os outros sabores que vais experimentando (e que, sublinho, deves ir experimentando, pois é do contacto com a diferença que nos tornamos ainda mais iguais a nós próprios - porque até o diamante para ser polido precisa de conviver com uma áspera lixa) se tornem em ti mais proeminentes que o sabor da tua essência original - sob perigo de, se essa proeminência de um sabor estrangeiro em ti ocorrer por um período de tempo superior ao razoável, a certa altura já nem sabes a que é que sabes.

Eu voltei a saber a que é que saibo - e sabe bem. Espero que saibas também o teu sabor e sigas tudo o que sabe a ti.



23.01.2012
1:12

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Não somos o que fazemos

Somos o que somos, não somos o que fazemos.

O que fazemos é apenas uma projecção do que somos; é o eu aplicado num uso prático; é o ser com um verbo atrelado.
O que fazemos é - está certo - uma parte da nossa reflexão no espelho da vida. O que fazemos é (aceito) um fruto da grande árvore do nosso ser, pelo que o sabor do fruto poderá deixar adivinhar a índole e o pulsar das raízes do âmago do nosso ser.

Mas o que fazemos é, por vezes - socialmente, atrevo-me a dizer que é: sempre -, hipervalorizado e equiparado ao que somos. Ou não fosse a resposta à típica pergunta "o que é que queres ser quando fores grande?" invariavelmente uma profissão - um "fazer": que, na verdade, constitui apenas uma ínfima parte do nosso amplo ser (cuja maior dimensão está submersa como um gigante iceberg do qual só é visível a ponta à superfície do oceano).

Dizer que ser se reduz a fazer é tomar a parte pelo todo e casmurramente acreditar numa mentira socialmente fabricada para nos amestrar - fazendo crer que nascemos só para uma função (pelo que do insucesso resulta a depressão).

Ora, a verdade bruta é esta: o que fazes é apenas (e no máximo) um meio para o que és - já és tudo antes de fazer, pelo que não precisas de fazer nada para já seres. O Ser existe antes, depois e para além da versão prática de ti mesmo.

Agora que sabes isto (e sentes paz e confiança): anda lá, mexe-te e faz. Não autorizo que o conhecimento desta verdade legitime a tua preguiça.






















Curiosidade: nesta capa dos Sigur Rós está escrito: "cold water senses the spirit of free play"



15.01.2012
11:18


quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Partes de mim

Qual é a parte de mim que tem razão?
- É a parte que analisa, disseca e atribui razoavelmente a cada i um ponto?
- Ou é a parte que se abstém de pensamento, sente o avesso da verdade e deixa os pontos flutuarem por cima, pelo meio e por debaixo dos i's à sua bel-vontade?

Qual é a parte de mim que vê a verdade?
- É a parte inteligente, toda-poderosa, de perspicácia felina e frieza fatal?
- Ou é a parte que sente sem antes nem amanhã; a parte onde palpita o presente da crença inocente que o que existe é suficiente?

Qual é a parte de mim que é mais igual a mim?
- É a parte céptica de crosta de sarcasmo, que joga dados de felicidade inabalável (ai de quem a ameaçar!) e é indesiludível porque já não compra a crédito a ilusão?
- Ou é a parte que nunca cresce, que começa sempre de novo; que insiste em acreditar no sentido cândido das coisas; que reza, sonha e suspira?

Qual é a parte de mim mais evoluída?
A parte-mundo ou parte-céu?
A parte-corpo ou a parte-alma?
A parte-sobrevivência ou a parte-sonho?
A parte-vivida ou a parte-imbuída?

Pim, pam, pum - qual é?

...E tenho mesmo que escolher uma parte, em prol da consistência e sistematidade de conduta? Ou será que a rectidão da verdade está no frágil balanço em equilibrar a todo o momento as duas partes?


12.01.2012

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Porque é que eu escrevo?

Eu escrevo porque sinto a nostalgia do tempo que se escapa como areia entre as mãos diante dos meus olhos, sem por vezes eu ter consciência plena daquilo que cada instante significou para o meu crescer exterior e a consolidação do ser interior que construo - tentando ser em cada momento mais igual a mim própria do que era no anterior; ou tentando ser em cada momento mais igual àquilo que pretendo ser (a utilização de uma ou outra concepção hipotética está apenas dependente da resposta à pergunta se o ser humano parte à nascença do "0" ou do "1").

Eu escrevo em prosa para exprimir as minhas ideias e emoções o mais concretamente possível, já que estas são dotadas de uma imaterealidade abstracta díficil de ser contornada até por mim - logo, para um imaginário leitor seriam indecifráveis se apresentadas sob o véu esfumante, hermético e ilusório de um poema ambíguo e subjectivo.

22.05.2002

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Pede e ser-te-á dado

Não há nada que não possas pedir e não possas ter. Pois tudo o que é concebível pela mente humana é passível de existir algures no tempo e espaço - aliás: já existe, mesmo que apenas em ti. E tu és o princípio (e o fim) de tudo - não és?

05.01.2012

domingo, 8 de janeiro de 2012

EXcesso

O exagero é a única forma de se viver equilibradamente. Viver medianamente é uma afronta à preciosidade da vida. Se tens bom senso e sensibilidade sabes que não existe vida sem momentos de explosão, de excesso, de extrapolação da existência. Mais: esta é a única forma de vida - de sentires o pulso da vida em ti e de ti na vida.
Du-vida(s)?

06.01.2012

domingo, 1 de janeiro de 2012

A inalienável leveza do ser


transcrito de antigo diário, escrito em 07.12.2002



O ser a sua leveza são qualidades inseparáveis para uma salubridade que, por ser imperceptível, brota do âmago da origem.
É ser quase não sentindo o peso da nossa presença;
é moldarmo-nos aos contornos da circunstância da natureza; é fazer do fluxo sanguíneo pessoal uma ligação à elementar flexibilidade das veias do mundo.
É agir não segundo padrões pré-convencionados;
é julgar não a partir de juízos formulados anteriormente à situação presente; é não querer Ser dentro de uma linha de orientação auto-imposta que se baseia tão somente em limites restritivos a tudo aquilo que poderíamos de facto Ser.
Ser simplesmente o que somos; não o que achamos que somos; ou o que os outros acham que somos. Estas duas últimas concepções afectam redondamente o ser, na medida em que estabelecem uma sanidade pautada e previsível - o que é estritamente útil dada a complexidade da malha social e a necessidade de uma construção da realidade em que o indivíduo se revê em face do papel que ocupa na massa - mas amorfam quaisquer outras possibilidades não exploradas, que estenderiam os horizontes pessoais das perspectivas exteriores de cada um.

O que eu quero dizer é que só quando nos apercebemos que estamos a ser é que estamos a ser autenticamente. E só quando as teias não ofuscam os nossos olhos é que podemos ter uma visão virgem de tudo o que é selvagem e puro.
Isto é a inalienável leveza do ser.
Só assim poderemos ver um dia (pode ser ao amanhecer enquanto o melro pia; ou num dia de frio ao sair de casa; ou quando olhamos para o céu e vemos as estrelas) - num dia qualquer - que o mundo é redondo, suave e grande - maior do que a nossa vista (mesmo sem teias) pode conter. Mas não tão grande como aquilo que podemos Ser.