quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

O boi, o cisne e o palácio

Era uma vez um boi branco que morava num palácio de cristal com um cisne transparente.
- Que lindo cisne - dizia o boi.
E o cisne:
- Obrigada, caro boi. És boi, mas és branco, como eu gostaria de ser. Eu te venero, boi. Mas se sou transparente, como me consegues ver?
- Não te vejo a ti, mas as paredes do meu palácio. Sei que estás aí: eu te ouço e sinto as tuas penas ásperas a tocar no meu precioso pêlo de boi branco. És um testemunho da beleza do meu palácio. Por isso igualmente te venero, cisne.
- Sim, boi. Tu és branco, como eu deveria ser. Eu sou transparente, como as paredes do teu palácio - amas o teu palácio, logo amas a minha transparência. Aí jaz a base do nosso mútuo amor.

E viveram felizes para sempre.


Um dia, o boi pergunta ao cisne:
- Ó cisne, porque és tu transparente e não branco, como gostarias e deverias ser enquanto cisne?
E responde o cisne:
- Boi, eu sou branco. Mas tu tanto amas o teu palácio, que até em mim vês a sua cor transparente. A tua brancura tão branca reflete-se no cristal do palácio e cega-te os olhos de boi, meu caro boi. E como o teu amor por mim se deve à minha cor transparente - igual às paredes do teu palácio - esse amor também te cega e assim me vês transparente - que é o mesmo que dizer que não me vês. E assim eu te confirmo boi que, aos teus olhos, sou transparente.
E diz o boi:
- Hum.
E pergunta o cisne:
- E tu, boi, porque és branco?
Responde o boi:
- Meu belo e adorado cisne, eu não sou branco. Na verdade, tenho cor de boi. Se me vês branco, foste enganado pelo teu amor-próprio. Pois só me consegues amar se eu for branco, como tu. E como o teu amor por mim se deve à minha cor branca - igual às tuas penas - esse amor também te cega e assim me vês branco. E assim eu te confirmo que, aos teus olhos, sou branco.

E responde o cisne:
- Quack!
E responde o boi:
- Muuu...
E assim termina a ilusão do cisne transparente e do boi branco, que afinal não passavam de dois animais perdidos no amor à sua própria beleza - no egoísmo mútuo e reciprocamente alimentado por um amor interessado em si.

E viveram infelizes para sempre.

Resta dizer que o palácio de cristal nunca existiu. Era uma ilusão fabricada do boi com origem num sonho em que ele tanto acreditou, que o começou a ver. Porque afinal diz-se que "basta acreditar para alcançarmos os nossos sonhos".

Fim.


Moral da história
O narcicismo auto-bajulatório exarcebado pode cegar a nossa visão do outro, vendo o outro como "transparente" (=não ver o outro) ou permitindo-nos ver apenas a aquilo que queremos ver - aquilo que contribui para a nossa alimentação narcísica individualista.
O amor que se baseia na fertilização mútua do ego, mais cedo ou mais tarde, será desmascarado pela verdade, que estilhaça a ilusão sem piedade. E, para sermos sinceros, mais vale uma verdade crua e infeliz, que uma feliz e oca ilusão.

"Somewhere along the way I forgot how to love" - Alexander Lowen in Narcissism: Denial of the True Self.


06.11.2011

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