quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Era uma vez um chapéu

Era uma vez um chapéu.
O chapéu era muito chique, rijo e preto. O chapéu adorava passear pelas cabeças de executivos, chefes de família e senhores de charuto - e endireitava os seus vincos rijos de chapéu sempre que era gentilmente retirado da cabeça para ajudar o seu cavalheiro enchapelado a cumprimentar uma donzela que passava.
O chapéu morava numa chapelaria de aluguer em Zurique nos anos 20 - que melhor destino poderia ter escolhido um chapéu? O chapéu orgulhava-se da sua sorte e vangloriava-se aos outros chapéus que via de passagem: à boina na cabeça do moço de recados, ao gorro colorido na cabeça da menina, à chapeleta de plumas na cabeça da relojoeira que via à entrada da cinemateca: "Olhem para mim: sou o chapéu mais bonito da cidade, passeio-me em cabeças ricas de toda a idade e nunca me aborreço, pois cada dia uma nova cabeça eu conheço."

Um certo dia de Outono em que chovia, o chapéu foi requisitado para coroar de estatuto a cabeça de um jovem banqueiro, como retoque final de uma receita de confiança e coragem para este pedir a mão em namoro de uma lolita sonhadora - que, por sinal, não tolerava um chapéu na sua cabeça por mais tempo que o necessário para causar impressão, mas que para esta ocasião se enchapelou com o chapéu frou-frou na cabeça e a devida renda que dele pendia a tapar metade do seu olho direito.
Ora, o nosso chapéu muito preto, rijo e chique, quando se viu a ser tirado da cabeça cheirosa do jovem banqueiro para cumprimentar a donzela de chapéu frou-frou, ficou de tal modo abismado com tal beleza e sublimidade do chapéu frou-frou, que tropeçou das mãos do banqueiro para a calçada poeirenta de Zurique - e se tornou assim um pouco menos preto, menos rijo e menos chique.
A partir desse momento, o chapéu sonhava com o dia em que pudesse pertencer ao guarda-fatos do jovem banqueiro, para poder viver feliz para sempre ao lado do chapéu frou-frou da lolita donzela.

Chegou o dia em que o banqueiro e a lolita foram escolher os chapéus que os iriam acompanhar na sua festa de noivado e para o resto da sua vida de casal como chapéus-mor primogénitos.
A lolita donzela já tinha escolhido: era o seu querido chapéu frou-frou, pois era o único que conseguia tolerar na sua pequena cabeça de lolita por um período de tempo suficientemente longo para lhe permitir dar a impressão à sociedade de que já era adulta.
O jovem banqueiro não sabia, pois sempre tinha experimentado tantos chapéus ao longo da sua curta vida de jovem banqueiro: altos, baixos, rijos, moles, chiques, casuais, pretos, castanhos - tantos, que já nem sabia qual o norte da sua cabeça.
Então disse assim à lolita:
- Querida, não consigo escolher um. E se continuasse sem chapéu e a alugar diferentes chapéus, como tenho feito até aqui na minha vida de banqueiro solteiro? Afinal, não é de chapéus que se faz o nosso amor...
E a lolita respondeu assim:
- Hás-de escolher um só chapéu, como escolheste uma só donzela. O amor e o casamento baseia-se tanto num chapéu, como numa aliança, numa casa ou num nome. Não quererei casar contigo, jovem banqueiro, se não souberes com que chapéu vestir a tua cabeça; duvidarei até se tens cabeça, se não souberes o norte do teu chapéu.

Mas o Inverno foi passando, foi-se aproximando a data marcada para o noivado, e o jovem banqueiro continuava sem chapéu. A jovem lolita inchava e desinchava as têmporas de ansiedade, o chapéu frou-frou vincava-se e desvincava-se de desorientação por não ver o seu par, e o nosso caro chapéu preto, rijo e chique continuava estacionado na chapelaria de Zurique, rezando avé-chapéus ao deus dos chapéus para poder enamorar o chapéu frou-frou que tinha encantado o seu coração de chapéu na cabeça da lolita.

Um belo dia, estava a lolita sonhadora perdida nos seus pensamentos, enquanto passeava o chapéu frou-frou pela Primavera de Zurique, quando se chocou de encontro a um poeta-pintor despenteado que, igualmente perdido em si, passeava pela Primavera de Zurique o seu recém-adquirido-para-sempre chapéu - que era, nada mais nada mais, que: sim, o nosso caro chapéu preto, rijo e chique.
Escusado será dizer que o chapéu preto vincou-se de contente ao cruzar os seus olhos de chapéu com os olhos de chapéu do chapéu frou-frou.
Escusado será também dizer que o poeta-pintor despenteado logo ali poetizou e pintou a lolita sonhadora, sem vésperas nem cerimónias.
E a lolita sonhadora - sonhadora que era - logo ali se rendeu e, desde esse dia em diante, todos os seus sonhos passaram a ser desenhados à volta do poeta-pintor, tão despenteado - mas tão cheio de chapéu, tão senhor do seu chapéu.

Um outro belo dia, os nossos chapéus apaixonados - que não aguentavam mais de paixão e queriam enchapelar-se um ao outro - pegaram na cabeça dos seus donos e levaram-nos a passear pelo Verão de Zurique, lado a lado. Foi então que, logo ali junto à fonte, no cruzamento da praça velha, o poeta-pintor pediu a mão da lolita em casa-amor-amento - cada qual encabeçando o chapéu que tinha escolhido para os enchapelar para todo o sempre.
Ainda mal a lolita tinha acabado de anuir, quando o chapéu preto se inclinou para o chapéu frou-frou e o beijou com o seu fervor de chapéu preto - agora ainda mais rijo e um pouco menos chique. Logo ali se enchapelaram, sem vésperas nem cerimónias, saltando para fora das cabeças dos seus donos recém-enoivados - tornando-se assim o poeta-pintor ainda mais despenteado, e a lolita ainda mais sonhadora, com os seus cabelos soltos ao vento.

É claro que foram enchapeladamente felizes para sempre.

Quanto ao jovem banqueiro, diz-se que até ao momento ainda não conseguiu decidir-se pelo chapéu com que quer ficar para sempre e que acabou por montar um negócio de aluguer de chapéus para outros temporariamente-eternos e desenchapelados como ele.

Fim.







Moral da história - na perspectiva do jovem banqueiro:
Sempre que não fazes algo, o tempo fá-lo por ti. Tenta saber sempre o que queres (qual é o teu chapéu?) - e depois de o saberes: conquista-o (compra o chapéu). Alugar chapéus (experimentar, testar, planear) é bom, mas há um ponto em que tens que saber escolher (qual a tua prioridade?). Estás disposto a abdicar do aluguer de chapéus, para comprar o melhor chapéu da chapelaria - esse que levará à felicidade (a vida com o chapéu frou-frou)? Mais vale seres um poeta-pintor despenteado que sabe escolher o seu chapéu, do que um jovem banqueiro com todo o potencial para ser enchapelado com o melhor chapéu do mundo, mas que depois não toma o passo final da escolha - e tudo perde.

(Na perspectiva das outras personagens, pensem vocês, porque eu já estou com sono).



27.03.2012. - 4:30





2 comentários:

  1. Já diz o velho ditado,” quem tudo quer tudo perde”. Mas a dificuldade muitas vezes é na certeza de se estar a fazer a escolha certa, se é o que melhor se coaduna ás nossas necessidades, se realmente é o que nos assenta na perfeição! E quando temos essa certeza, no entanto por motivos vários este não está ao nosso alcance… Não desfazendo o que dizes, pois concordo, mas podendo não ser assim tão linear, resta-nos como consolo aclamar o querido Vasco Santana “Chapéus há muitos seu palerma” : ) Também eu quero o meu Chapéu ; )

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  2. E quem nada quer também tudo perde.
    Mas sim: não faltam chapéus; o mais há são chapéus - mortos por nos enchapelar. :)
    Mas só quero o meu.

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