quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

A manta de retalhos

Era uma vez uma manta de retalhos.
A manta era muito grande e colorida, composta por muitos retalhos, cada um com a sua história; cada um representando uma parte de si.

Mas a manta não conhecia a história e a origem de cada retalho - a manta não se conhecia.

A manta só sabia que era uma grande manta de retalhos, maior do que qualquer outra que tivera visto. Era uma manta maiúscula no mundo das mantas, sendo sempre colocada por cima de todas as outras: nas camas, nos sofás, no colo dos avós, no chão do quarto de brincar das crianças.
A manta julgava-se uma senhora manta, rainha dos retalhos - seus subservientes súbditos.

Até que um belo dia de verão, os retalhos decidiram que queriam ser independentes e ser donos do seu próprio destino.
Um retalho pensou: "eu quero ser um lenço da mão de um executivo de valores tradicionais e estilo inimitável; quero ser o toque final de primor na sua vestimenta".
Outro retalho fantasiou: "eu quero ser um cachecol a afagar o pescoço de uma menina de pele de seda; quero ser o seu conforto familiar em forma de tecido nos dias de frio".
E ainda, um outro retalho divagou: "eu quero ser um pano de limpeza nas mãos ásperas de um marinheiro; quero ser útil no asseio de um meio de transporte tão esplendoroso como é um navio, viajando ao sabor do vento".
Ora, quando a cada retalho começou a pensar por si próprio - e mais -, quando cada um começou a verbalizar as suas aspirações individuais aos outros retalhos, mais retalhos foram se descobrindo a si próprios, explorando sonhos que nunca imaginaram serem possíveis de existir, pois sempre suposeram que só poderiam subsistir enquanto fossem parte de uma manta orgulhosa.

Foi então que a grande manta se apercebeu que, afinal, não era uma grande manta, mas sim um conjunto de retalhos que até então desconhecia. E que se não começasse a conhecer e a prestar atenção a cada bocado de si, em breve estaria morta, desfeita, esfarrapada.

Posto isto, a manta convocou uma assembleia para todos os retalhos, em que cada retalho deu voz à sua expressão interior: a manta deixou pulsar cada ponto do seu ser, cada bainha mal cosida, cada remendo estortegado.
Depois de serem ouvidos todos os desejos de cada retalho, seleccionaram-se dois ou três que poderia ser realizados enquando manta - enquanto retalhos unidos:
apagar o fogo do corpo de vítimas num incêndio;
aconchegar um sem-abrigo num albergue;
decorar a parede de uma sala de gosto estético alternativo.
Os restantes desejos foram classificados como desviantes do destino do "ser manta", pois só poderiam ser realizados por retalhos individuais enquanto retalhos.

E foram a votos:
quem quer ser parte da manta, perseguindo os novos propósitos definidos por todos os retalhos;
e quem quer ser retalho, vivendo um função mais simples mas mais diferenciada e individualista.
Como resultado, separaram-se da manta os retalhos que não serviam o propósito da manta - que apenas a dilaceravam internamente. E permaneceram aqueles retalhos que - agora que eram conhecidos e valorizados pela manta - realmente encarnavam a identidade e realização do "ser manta", guiados agora por objectivos com valor.

A manta tornou-se assim mais pequena. Foi necessário coser novas bainhas - curar feridas - pelos retalhos que tinham partido.
Mas, acima de tudo, a manta tornou-se mais Manta - agora maiúscula não na dimensão mas na sua índole. Pois conhecia cada parte de si: cada pedaço da sua unidade - ouvia, respeitava e amava cada bocadinho daquilo que a tornava uma manta feliz.


Moral da história:
Conheces os teus retalhos?
Quais deles serão melhor descoser?
Qual o propósito que queres seguir - que os retalhos que te compõem querem seguir?
Conhece os teus retalhos - cada um conta uma história, um desejo, um medo, uma alegria.
Pois até a manta se tornou mais feliz quando deixou de ser uma "senhora manta" e passou a ser uma manta para uma senhora (ou um senhor, uma pessoa, este ou aquele) - para servir.



14.11.2012



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